quarta-feira, 14 de fevereiro de 2007

Por quem os sinos dobram

Então estamos nos aproximando cada vez mais do Mal Absoluto. Quando rapazes, em pleno controle de suas faculdades mentais, são capazes de arrastar um menino pelas ruas de uma cidade, isso não é apenas um ato isolado: todos nós, em maior ou menor escala, somos culpados. Somos culpados pelo silêncio que permitiu que a situação em nossa cidade chegasse a este ponto. Somos culpados porque vivemos em uma época de “tolerância”, e perdemos a capacidade de dizer NÃO. Somos culpados porque nos horrorizamos hoje, mas nos esquecemos amanhã, quando há outras coisas mais importantes para fazer e para pensar. Somos os olhos que viram o carro passar, o medo que nos impediu de telefonar para a polícia. Somos a polícia, que recebeu alguns telefonemas através do número 190, e demorou para reagir, porque o Mal Absoluto parece já não pedir urgência para nada. Somos o asfalto por onde se espalharam os pedaços de corpo e os restos de sonhos do menino preso ao cinto de segurança. A cada dia uma nova barbárie, em maior ou menor escala. A cada dia algum protesto, mas o resto é silêncio. Estamos acostumados, não é verdade?Muitos séculos atrás, John Donner escreveu: “nenhum homem é uma ilha, que se basta a si mesma. Somos parte de um continente; se um simples pedaço de terra é levado pelo mar, a Europa inteira fica menor. A morte de cada ser humano me diminui, porque sou parte da humanidade. Portanto, não me perguntem por quem os sinos dobram: eles dobram por ti.” Na verdade, podemos pensar que os sinos estão tocando porque o menino morreu, mas eles dobram mesmo é por nós. Tentam nos acordar deste cansaço e torpor, desta capacidade de aceitar conviver com o Mal Absoluto, sem reclamar muito – desde que ele não nos toque. Mas não somos uma ilha, e a cada momento perdemos um pouco mais de nossa capacidade de reagir. Ficamos chocados, assistimos às entrevistas, olhamos para nossos filhos, pedimos a Deus que nada aconteça conosco. Saímos para o trabalho ou para a escola olhando para os lados, com medo de crianças, jovens, adultos. Entra ano, sai ano, mudam-se governos, e tudo apenas piora. O que dizer? Que palavra de esperança posso colocar aqui nesta coluna?Nenhuma. Talvez apenas pedir que os sinos continuem tocando por nós. Dia e noite, noite e dia, até que já não consigamos mais fingir que não estamos escutando, que não é conosco, que estas coisas se passam apenas com os outros. Que estes sinos continuem dobrando, sem nos deixar dormir, nos obrigando a ir até a rua, parar o trânsito, fechar as lojas, desligar as televisões, e dizer: “basta. Não agüento mais estes sinos. Preciso fazer alguma coisa, porque quero de volta a minha paz”. Neste momento, entenderemos que embora culpemos a polícia, os assaltantes, o silêncio, os políticos, o hábito, apenas nós podemos parar estes sinos. Nosso poder é muito maior do que pensamos – trata-se de entender que não somos uma ilha, e precisamos usá-lo. Enquanto isso não acontecer, o Mal Absoluto continuará ampliando seu reinado, e um belo dia corremos o risco de acreditar que ele é a nossa única alternativa, não existe outra maneira de viver, melhor ficar escutando os sinos e não correr riscos. Não podemos deixar que chegue este dia. Não tenho fórmulas para resolver a situação, mas sou consciente de que não sou uma ilha, e que a morte de cada ser humano me diminui. Preciso parar minha cidade. Não apenas por uma hora, um dia, mas pelo tempo que for necessário. E recomeçar tudo de novo. E, se não der certo, tentar não apenas mais uma vez, mas setenta vezes. Chega de culpar a polícia, os assaltantes, as diferenças sociais, as condições econômicas, as milícias, os traficantes, os políticos. Eu sou a minha cidade, e só eu posso mudá-la. Mesmo com o coração sem esperança, mesmo sem saber exatamente como dar o primeiro passo, mesmo achando que um esforço individual não serve para nada, preciso colocar mãos à obra. O caminho irá se mostrar por si mesmo, se eu vencer meus medos e aceitar um fato muito simples: cada um de nós faz uma grande diferença no mundo.

Paulo Coelho

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