domingo, 2 de agosto de 2009

ROTEIRO DE SONHOS

Enquanto a multidão se encontra absorvida e, por vezes, perdida nos intensos apelos à juventude eterna, mergulho nos meus sonhos repletos de amanhãs, consciente, no entanto, de que o amanhã é algo meramente virtual, e o que vale é o aqui e agora.

Teço meus sonhos sem, contudo, mostrar lastros de alienação, atenta que sou ao corre-corre do dia-a-dia, sirenes, bate-estacas,vulcões emocionais e perplexidades mil. Vivo roteirizando meus sonhos, o que se constitui num intenso exercício de aceitaçao às mudanças que já se delineiam.

Vivo numa cidade pacata, no interior do sul. Minha casa tem inúmeros canteiros, e meu quarto, uma estante repleta de livros. Sempre fui viciada em leitura. Mudaria apenas por ter completado oitenta e cinco anos?

De vez em quando, ainda escrevo, sempre com toques de nostalgia, mas aquela nostalgia que não entristece, que não faz do coração caquinhos... Tenho amigas escritoras, cantoras e pintoras. Semanalmente, nos reunimos para saraus no pequeno centro cultural da cidade. Conservo as preferências de minha mocidade. Aliás, nunca deixei de me considerar jovem. Filhos, netos e bisnetos, por vezes, chegam em visita, trazendo aquela euforia própria da juventude, que nos deixa em estado de graça.

Após tantas décadas juntos, continuamos um casal quase perfeito: cúmplices, amigos; e como gostamos de aproveitar cada dia que se apresenta aos nossos olhos! É uma constante renovação.

A mesa onde ele se reúne com os amigos para o carteado dos domingos, a cada ano, vai se esvaziando. E vamos vivendo, conscientes de que sempre fomos realistas em relação a perdas e ganhos, porém nunca tivemos dúvidas em relação ao nosso amanhã. Tínhamos certeza de que envelheceríamos juntos. Havia uma verdadeira comunhão de almas entre nós, eu costumava dizer, embora fosse uma pessoa cética, desligada de temáticas religiosas ou místicas. O que, então, teria me dado essa certeza?

Gosto de ver minhas rugas, meus cabelos brancos e ralos, e me apraz caminhar com o auxílio da bengala, ao mesmo tempo que observo as mudanças ocorridas nele: o andar cambaleante, a voz baixa, as costas curvadas, a calvície acentuada, que me traz saudade boa da cabeleira prateada que o acompanhou até aos setenta! Continua, no entanto, um homem atraente, conservando o sorriso solar.

Falando francamente, nem tenho a percepção de que vivemos tanto tempo. Confesso que o viver é um ato curto. Tudo passa como num piscar de olhos. Sem esmorecer, continuo elaborando sonhos, como se a vida não tivesse fim. Através deles, celebro a ventura de ter sido feliz, apesar da certeza inabalável acerca da brevidade e das inconstâncias desta vida.

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